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A violência narrada e a narrativa da violência

Nós brasileiros somos um povo que tolera excessos, tanto na vida pública quanto privada, onde os que se excedem lucram e se vangloriam com seus feitos e os demais silenciam e compactuam, voluntária ou involuntariamente. Tornamo-nos violentos de fato quando incorporamos as práticas de violência como parte de nossa rotina, portanto, fazendo-as aceitáveis, passando a viver e educar segundo esse pressuposto.


Violência é aqui entendida como tudo aquilo que nos atinge como algo invasivo, aviltando nossa dignidade e nosso direito e que fica além da capacidade física ou simbólica de suportar ou de enfrentar, nos paralisando, nos machucando, nos deixando desamparados e desprotegidos.

Quando essas formas de violência não são validadas como tal, elas passam a ser consideradas de ordem intangível e, assim, não computadas como transgressões e agressões nem nas estatísticas nem nas nossas representações mentais subjetivas. Ficam invisíveis fazendo com que o mal-estar que despertam também seja desconsiderado, abrindo caminho para a repetição interminável, que às vezes atravessa gerações. Inicia-se, desse modo, um ciclo vicioso que sustenta e é sustentado por atos violentos. As violências que não são nem explícitas nem denunciadas são ditas “secundárias” e não parecem nos abalar como sociedade, embora isso seja absolutamente não possível.


Ainda que nos impacte sempre, uma ação violenta só nos afeta verdadeiramente quando tomamos consciência psicológica dela e não, necessariamente, no momento em que ela acontece ou é noticiada. Daí porque notícias que circulam continuamente, contando histórias de famosos ou anônimos envolvidos em crimes, agressões, abusos e tantas outras formas de transgressões nos causam reações ambivalentes: queremos saber de todos os detalhes, em uma tentativa “saudável” de fazer um registro psíquico dessa narrativa da violência; mas, ao mesmo tempo, invadidos por tanta informação não pensamos mais na amplitude das coisas, perdemos a visão global e somos convidados a escutar apenas a história narrada, desvinculado-a de suas implicações. Até nisso há violência, pois ficamos impedidos em nosso direito de não sermos expostos à informação medíocre, que explora os fatos de forma sensacionalista, desumanizando-os.


O excesso de minúcias com que se narra uma violência tira o foco do que é a questão essencial. Conta a realidade como capítulos de uma novela, nos envolvendo a tal ponto que perdemos toda crítica. Esta é, pois, a melhor maneira de um fato chocante perder logo o seu poder de nos sensibilizar e de nos remeter à reflexão. Essa violência expressa e escancarada, que é contada euforicamente, apenas denuncia as outras tantas violências e deterioração ética que se mantêm subjacentes: o descompromisso com os valores humanos, o estímulo à fama e ao poder financeiro em detrimento da educação e do trabalho, a exploração da vulnerabilidade dos menos favorecidos, a negligência infantil, a violência doméstica, o descaso com a saúde mental, e assim por adiante.


Na medida em que as instituições públicas e sociais deixam de mediar todas essas formas de violência secundárias, focando apenas nos fatos narrados, elas se enraízam e se convertem em fenômenos que subsidiam as demais formas de violência, ditas genéricas. A linguagem subliminar da violência é, assim, rapidamente entendida e respeitada, onde as regras são desenhas a partir da conveniência dos que transgridem.


Além de tema para os telejornais e programas sensacionalistas, a violência cotidiana, institucionalizada ou não, deveria servir à reflexão social, profunda e enriquecedora, pouco importando as minúcias em que se originou. Para nós, cidadãos comuns, importa muito mais o recado implícito que os fatos narrados nos enviam e a narrativa que fazem de nossa condição humana: que relações estabelecemos na intimidade, em nome da paixão, do ciúme, da conjugalidade, da sexualidade, da fama, do acúmulo de bens ou do mero exercício do poder? Que tipo de gente nós estamos nos tornando?


Hoje, o espaço, os recursos e o tempo concedidos para a narração das conseqüências da violência são desproporcionais aos investimentos destinados à conscientização e enfrentamento das suas raízes. É fato que a problematização da violência como um tema de interesse social e de saúde pública é recente, datando de meados do século XX. Desde a Idade Média, diante das barbáries envolvendo violência de todas as naturezas, as discussões foram mais dirigidas à justiça e falência do Estado do que para os comportamentos violentos em si. Hoje, em comparação, os holofotes estão dirigidos em tempo real a cada movimento dos envolvidos em atos violentos e transgressores mais do que para a narratividade dos fatos. Mais do que contar os fatos que envolvem violência é necessário pensar o que os fatos nos contam sobre nós, seres humanos e cidadãos brasileiros.

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