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Descubra-se e aventure-se a voar

É preciso mostrar a nós mesmos que há algo que pode ser valioso ali onde nada parece existir aos olhos desatentos.


Ao norte da Espanha há uma região, Altamira, conhecida pelas cavernas recobertas por pinturas rupestres de imagens de animais, feitas ainda no período pré-histórico.


Mas a história do descobrimento das cavernas de Altamira não teve um inicio honroso e nem digno de comemorações ante a reação daqueles que se intitulavam detentores do saber.


Don Marcellino Sanz de Sautuola, o famoso Conde de Altamira, entrou para a história a revelia de suas intenções e morreu amargurado e decepcionado com o rumo dado aos seus investimentos. Proprietário de terras, a partir de suas próprias explorações nas cavernas da região, ainda por volta de 1875, teve a “ousadia” de afirmar diante de importantes pré-historiadores do mundo paleontológico que havia pinturas do período glaciário em cavernas de sua propriedade, não sem antes pesquisá-las com afinco. Don Marcellino tornou-se, de fato, famoso após uma enxurrada de acusações de fraude, que o ridicularizaram e persistiram por muito tempo, atrasando a evolução da Paleontologia, só tendo sido desfeitas 14 anos após a sua morte.


O mais incrível é que o forte argumento utilizado pelos cientistas da época para taxá-lo de falsificador foi o fato das imagens publicadas em importantes revistas cientificas estarem revelando uma qualidade artística muito elevada nas pinturas, as quais também estariam em estado excepcional de conservação. Portanto, concluíram que só poderiam ser falsificações, mesmo sem nunca terem realizado um simples exame no local das pinturas. Parecia impossível aos especialistas não exatamente acreditar no Conde de Altamira, mas, sobretudo, aceitar que seres humanos tão pouco evoluídos como as espécies pré-históricas pudessem possuir habilidades dessa natureza.


Esses especialistas chegaram a ir até a entrada das cavernas, mas recusaram-se a examinar as pinturas, tão apegados aos dogmas e “verdades” instituídas por eles mesmos e absolutamente convictos de seu julgamento. Anos depois, Pablo Picasso, com todo seu talento para reconhecer a arte verdadeira, declarou, diante da visão destas pinturas “Depois de Altamira, tudo é decadência”, enfatizando a magnitude do talento artístico desses povos da nossa pré-história.


Vou valer-me do drama do Conde de Altamira para pensar a respeito da descrença que muitos de nós temos sobre o que pode existir além do que é de nosso conhecimento. A descrença nos próprios talentos ainda não revelados, na própria capacidade de fazer mais e melhor do que é o esperado. O potencial para ter uma vida saudável e feliz e uma carreira profissional satisfatória está presente em todos aqueles que detém o mínimo de recursos para uma vida digna. E, muitas vezes, surpreendentemente, somos levados a constatar pela realidade que até mesmo aqueles que crescem em situações muito adversas podem despertar capacidades e recursos que os levem ao pleno desenvolvimento. Porém, nada disso pode ganhar vida se primeiro não for reconhecido, validado em sua existência, verdade e importância pelo próprio sujeito.


É preciso mostrar a nós mesmos que há algo que pode ser valioso ali onde nada parece existir ao olhar desatento. Quantas vezes duvidamos que nossas capacidades são verdadeiras e de que nosso desempenho pode sim gerar resultados excelentes? Nesse ponto a curiosidade e o crédito a pequenas impressões são o motor que põe em marcha todo o processo de descobrimento de nossos tesouros, algo que nos permite apontar e questionar sem nos impor limites mesmo antes de termos certezas e provas, como fazem as crianças.


Isso me faz lembrar um detalhe que não mencionei na história de Altamira: embora os nativos da região já as conhecessem, a primeira a chamar a atenção, de modo enfático, para a presença das pinturas nas cavernas de Altamira foi uma criança, Maria, filha de Don Marcellino. Foi ao dar importância a alegria infantil da filha ao apontar as imagens que o Conde despertou para o início do movimento que o levou a explorar e divulgar as pinturas como raridades.


O descobrimento de verdadeiras preciosidades em nossa vida, como as pintura de Altamira, é um processo iniciado com a consciência de que há algo relevante no interior de nossas motivações íntimas, ainda que pareçam tolas e, sobretudo, na expressão daquilo que só nós mesmos podemos contar acerca do que sentimos e percebemos. Este desvendamento não pode, então, prescindir do contato curioso com o desconhecido, ou seja, com aquilo que só pode ser compreendido com a abertura para um novo aprendizado, levando-nos a observar, pesquisar e discutir o que ainda não sabemos definir ou explicar.


Hoje chamamos a isso de autoconhecimento, sendo considerado um atributo indispensável para uma vida plena. É “auto” porque demanda por ser apropriado pela própria pessoa: ela, antes do que qualquer outro, precisa decretar a verdade que há naquilo que descobre.


Autoconhecimento é para poucos ou muitos o evitam como os paleontólogos que se limitaram a observar e tirar conclusões sem realmente se embrenharem nas cavernas, incapazes de se deixar guiar por uma possibilidade apenas? De fato, apesar das muitas definições existentes, autoconhecimento é um conceito emblemático, cujo sentido nem sempre é claro. Mas imaginemos um pássaro preso em uma gaiola. Ele até vive e canta, mas está limitado a se alimentar apenas do que lhe oferecem e enxergar a vida através do limite de sua gaiola. Pouco se relaciona com o resto do mundo e voar, nem pensar! Se por ventura fosse solto, é bem provável que se perderia em meio as dificuldades para se alimentar, locomover-se e proteger-se de modo autônomo, afinal desconhece muito a cerca do que o satisfaz, do que pode obter com seus esforços ou do que fazer para si mesmo. Seria preciso primeiro que aprendesse ou fosse ensinado acerca de sua natureza, seus atributos e mecanismos próprios de sobrevivência e existência para que pudesse soltar-se no mundo, voando em direção a vida.


O autoconhecimento é o conhecimento de tudo o que está além do nosso plano de visão imediata, algo que liberta e faz avançar, abrindo novas perspectivas e permitindo que se voe para longe do que nos limita e prende. Possibilita descobertas revolucionárias, capazes de mudar o rumo das coisas ao nosso redor.


Mas é necessário abrir mão das certezas estabelecidas, da segurança e conforto de apenas pisar em território conhecido, arriscando-se, empreendendo, fazendo o que ainda não foi feito. Não é uma tarefa qualquer porque envolve o rompimento de nossas certezas com novas descobertas, nem sempre aceitas sem boicotes ou quebra de paradigmas. Envolve também a coragem de desafiar os céticos (às vezes, muito bem representados por nossas próprias dúvidas e inseguranças) e de buscar aliados e argumentos que ofereçam estímulos para não desistirmos do que ainda parece apenas uma possibilidade.


O Conde de Altamira intimidou-se diante da recusa e críticas às suas descobertas, refugiou-se em sua decepção. Talvez porque a sua própria convicção na sua capacidade de estar indo além de estudiosos renomados, de fazer algo grandioso, não fosse sólida o bastante para não duvidar de si mesmo. Mas plantou uma semente que acabou por germinar, antes que as tais pinturas fossem depredadas. E brindou-nos com o acesso a cavernas hoje declaradas patrimônio da humanidade.


Visite-as, nem que seja pela internet, talvez você se inspire a buscar sua própria Altamira!


Originalmente publicado em:

http://www.meiofiltrante.com.br/edicoes.asp?link=ultima&fase=C&id=717

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